Escrevendo Novamente?
Olá leitores. Faz bastante tempo que não escrevo nem dou satisfações para vocês. Eu deixei de escrever por questão de tempo, as cartas demoram bastante e foquei em alguns projetos pessoais. A verdade é que tive a sorte dos leitores sentirem minha falta durante esse ano que não escrevi e me pediram informações sobre um tema ou outro, que eu respondia por mensagem. Desta vez, alguns amigos pediram minha opinião sobre o grande tema da atualidade, a Guerra na Ucrânia. Eu acredito que o tema é importante o suficiente para abrir uma exceção e voltar a escrever.
A razão pela qual comecei a escrever em 2020 foi pela falta de informações sobre a indústria de tecnologia americana (e às vezes sobre política) que chegavam no Brasil. Algumas vezes fui crítico à qualidade do que chegava. A atual guerra entre Ucrânia e Rússia é um exemplo disso.
A qualidade da análise global do conflito disponível em inglês e em português é gritante. A cobertura no Brasil tem focado na violência da guerra e pouco nas consequências secundárias e terciárias. Infelizmente, vemos uma parte considerável da população brasileira “passando o pano” para invasão, comparando com as excursões da OTAN no Oriente Médio e usando isso como justificativa para defender o governo russo. Como diz o ditado: “dois errados não fazem um certo”. A análise geopolítica de grande parte da mídia e internautas é baseada numa visão de mundo restrita pelos fantasmas do século passado. Não vejo discussões sobre como o mundo caminhará para frente após essa semana e mais importante, não vejo na mídia brasileira análises sobre como esse conflito poderá ser resolvido, ou pior, tornar-se ainda mais grave.
Uma pequena pausa antes de continuar. Não sou especialista em relações internacionais. Não tenho acesso a informações privilegiadas nem confidências de nenhum governo. Minha análise é feita apenas com comentários, análises, livros e ensaios encontrados na internet. O tema é complexo, e cada um dos pontos que vou mencionar poderia ser um doutorado. Inclui muitos links, a maioria em inglês, com fontes para que cada um possa se aprofundar e entender mais sobre a causa do conflito. Fica o convite para uma discussão nos comentários!
A primeira parte da análise desse conflito contém duas seções:
Prelúdio da Guerra
Imperialismo
Essas seções são fundamentais para entender o contexto da guerra e entender porque o primeiro tiro foi disparado. Na próxima parte, vamos discutir sobre o delicado balanço de poder que existia antes da guerra e porque Putin quis modificá-lo. Escreverei também sobre a história da Ucrânia, as sanções impostas na Rússia, possíveis cenários bélicos que podem ocorrer nas próximas semanas e a nova ordem mundial, que já se tornou realidade.
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Prelúdio
A primeira reportagem em que tive conhecimento sobre essa possível invasão russa na Ucrânia foi no dia 3 de dezembro, no Washington Post. Na época, a reportagem não foi levada muito a sério, a não ser pelas pessoas mais hawkish, um termo geopolítico para indicar os que têm a maior proclividade para a guerra.
Não é difícil entender porque houve tanta dúvida quanto à veracidade das informações apresentadas. Os últimos 20 anos não foram gentis com o aparato de inteligência americano. A invasão do Iraque baseada em inteligência falsa, o desastre das excursões militares no oriente médio devido ao War on Terror e a catastrófica invasão e retirada do Afeganistão.
Em janeiro, as sirenes de guerra soaram mais alto, mas a desconfiança persistia. Os jornais e a população americana tinham dúvidas sobre a possibilidade de uma guerra, mesmo com o Pentágono confirmando as informações dos planos russos de invasão. Os aliados na Europa também se mostraram divididos, mesmo quando a Rússia confirmou que suas tropas estavam na fronteira com a Ucrânia e conduzindo exercícios militares com a Bielorrússia. O próprio presidente ucraniano brincou no dia 14 de fevereiro, pedindo todas as datas de invasão russa para os EUA e pedindo calma para que as partes pudessem negociar. Hoje sabemos que a inteligência americana estava correta quanto aos planos russos.
Também sabemos que os EUA entraram em contato com a China em novembro de 2021, compartilhando sua inteligência classificada para que os dois pudessem, em conjunto, convencer a Rússia a não invadir a Ucrânia.
Para o mundo, a China disse que os EUA estavam paranoicos e criando pânico e medo. Para a Rússia, a China pediu o adiamento da invasão para depois das Olimpíadas e alertou sobre o vazamento dos planos. Para os EUA, a China disse por suas ações, que o mundo agora tem duas superpotências.
Esse conflito marca o fim da Pax Americana. O mundo inteiro, inclusive os EUA, sabem disso. Por isso entender o que cada uma das duas tradicionais superpotências, EUA e Rússia, e a nova potência, China, querem é tão fundamental para entender o conflito na Ucrânia.
O mundo mudou no dia 24 de fevereiro.
I - Imperialismo
O termo imperialismo foi usado pela primeira vez nos anos 1870 por políticos ingleses para criticar a política expansionista do Império Britânico. No século XX, mas em particular após a segunda grande guerra, o termo passou a ser usado pelos modernistas e pós-modernistas para criticar a política externa dos EUA, que impunha sua visão de mundo capitalista no mundo, fosse no soft power ou firepower.
A ação que o termo imperialismo descreve, no entanto, não começa com o Império Britânico e não se limita aos EUA. Foi imperialismo durante as guerras púnicas, quando Roma amassou Cartago. Carthago delenda est. Quando o Império Otomano dominou os Balcãs. Quando os Incas conquistaram a América do Sul. Quando a Babilônia dominou a Mesopotâmia.
O que hoje chamamos de imperialismo faz parte, e por algum tempo fará parte da história humana. Os grandes poderes influenciam os pequenos, principalmente seus vizinhos. Damos sorte quando nossos vizinhos são comerciantes e azar quando são conquistadores. A influência se manifesta pela força da moeda ou da espada, mas ela sempre aparece. Eu garanto que no ano 1300 você preferiria os Médici a Tamerlão como vizinhos.
A história da humanidade se resume a diferentes impérios, reinos, ou repúblicas, buscando influência e espaço para prosperar e aflorar seu poder econômico, frequentemente usando a força militar para conquistar seus objetivos. A diferença é que desde a invenção do barco a vapor e do telegrama o mundo está conectado. A informação deixou de demorar meses ou anos para ser transmitida de um lado ao outro do mundo. Hoje a informação chega em segundos.
Voltando à Ucrânia. O conflito é marcado pelo desejo imperialista de dois países. Diretamente, da Rússia e indiretamente da OTAN, liderada pelos EUA. Além disso, temos obviamente o desejo e o direito ucraniano de manter sua integridade territorial e seu projeto de país.
OTAN e EUA
A Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN (NATO em inglês), foi criada em 1949 em um tratado de defesa mútua contra os soviéticos. A imagem abaixo mostra os 12 países fundadores da aliança e os países que ingressaram posteriormente.
A OTAN foi criada no contexto da Guerra Fria para promover uma aliança de defesa e cooperação dos países ocidentais em caso de uma agressão soviética. O artigo 5 da organização determina que um ataque contra qualquer nação membro significa o ataque contra todos, criando um mecanismo de cooperação defensiva.
A dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) representou a vitória da visão de mundo da OTAN e dos EUA. A aliança, no entanto, não foi dissolvida. Pelo contrário, os membros da OTAN e demais países europeus interpretaram a vitória na Guerra Fria como sinal de legitimidade da promessa de proteção aos países membros e na garantia de paz na Europa.
14 países voluntariamente pediram sua inclusão na OTAN e entraram para a organização após a queda do muro de Berlin. Países membros da URSS, como Lituânia e Letônia, ou países independentes que em algum momento foram violentamente ocupados por forças soviéticas, como Polônia, Hungria e a República Checa, entram para a OTAN para garantir sua segurança futura. É neste contexto de supremacia da OTAN, liderada pelos americanos, que entramos no período que o autor Francis Fukuyama descreve em seu livro como “O fim da história e o último homem (1992)”.
O autor parte da filosofia Hegeliana da sociedade progredindo linearmente com o passar do tempo para concluir que o fim da história, é a vitória da democracia-liberal-capitalista como o estágio final de organização das civilizações humanas. Esse seria o melhor arranjo do ponto de vista político, ético e econômico e que permitiria a metafórica caminhada no por-do-sol para o final dos tempos. Tribos de caçadores e coletores se transformam em reinos, monarquias absolutistas caem e se tornaram repúblicas ou monarquias parlamentares. O socialismo/comunismo é temporário e derrotado pelo capitalismo, não o contrário como propõe Marx. Joseph Henrich, professor de Harvard, cunhou o termo WEIRD (estranhos) para estes países neste estágio, eles são Western, Educated, Industrialized, Rich, and Democratic (ocidentais, escolarizados, industrializados, ricos e democráticos). O livro de Fukuyama sugere que os países onde este sistema ainda não se materializou, eventualmente se unirão à festa.
Obviamente, o mundo não passou a caminhar pelo pôr-do-sol desde a queda da URSS. Atentados de 11 de setembro, guerras do Iraque, crise de 2008, entre outros. Em defesa de Fukuyama, ele nunca disse que eventos deixariam de acontecer ou que não haveria fatores forçando a volta de sistemas inferiores de organização social, sejam externos ou internos. Inclusive, ele dedica o último capítulo à batalha dentro da democracia-liberal de grupos com desejos autoritários e como estes podem tomar o poder, mesmo que temporariamente. O que ele propõe é que todos os outros sistemas são inferiores, violentos e passageiros; eventualmente estabilizando em sociedades democráticas e capitalistas.
Os anos 90, transcorreram dentro do padrão do fim da história. Seria impossível retornar ao mundo soviético. O dinheiro Ocidental via FMI e Bancos Indústrias, financiando o desenvolvimento dos países emergentes, permitiria que estes saíssem da pobreza. O poder militar americano interviria em guerras (Yugoslavia) ou derrubaria ditaduras (Iraque) quando necessário. O capitalismo venceria e transformaria até os últimos comunistas em democracias capitalistas, como disse Bill Clinton em relação à China. Esse foi o imperialismo da OTAN no fim da história.
O desejo da população e do governo da Ucrânia de entrar para a União Europeia (58% da população em fevereiro de 2021) é para que o país possa participar desse grupo, prosperar como seus membros, e caminhar pro pôr-do-sol.
URSS, Pacto de Varsóvia e Rússia
A contrapartida soviética à OTAN era a Organização do Tratado de Varsóvia, conhecido como o Pacto de Varsóvia (PV). O PV foi criado em 1955 com o mesmo princípio da OTAN, para garantir a segurança dos países membros em caso de alguma agressão da OTAN.
O PV foi dissolvido em 1991, pouco após as revoluções de 89 em que os países do Leste Europeu abandonaram o arranjo socialista e derrubaram a cortina de ferro. A Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) surgiu como sucessora do PV, mas perdeu os membros do Leste Europeu, com exceção à Bielorrúsia.
A Rússia, estado sucessor da URSS, passou por uma caótica década de 90, assim como boa parte dos membros da URSS. O governo de Boris Yeltsin, o primeiro presidente eleito diretamente na história da Rússia, foi marcado pela enorme crise econômica. A Rússia, devastada financeiramente, perdeu sua influência na região. Sem a capacidade de financiar projetos dentro e fora do país, a Rússia viu o leste europeu independente se aproximar da União Europeia e da OTAN. A derrota na primeira guerra da Chechênia em 1994 despertou mais movimentos separatistas dentro do país e impulsionou a aproximação dos antigos membros do PV à OTAN.
Os países da imagem abaixo eram países independentes membros do Pacto. Ucrânia, Letônia, Lituânia e Estônia, que não eram independentes e faziam parte da União Soviética, eram por definição membros do pacto. Esses países, com exceção a Ucrânia, hoje fazem parte da OTAN.
É importante entender o pacto como uma grande bolha de proteção entre Moscou e a OTAN.
A geografia determina campos de batalha e da imagem acima podemos entender porque a Rússia tenta capturar e controlar o leste europeu. Ao norte, o gelo. A fronteira da Rússia com o mar Ártico e a Finlândia é caracterizada pelo frio, gelo e inospitabilidade. Além disso, a Finlândia é um país neutro (pelo menos até o momento, o governo finlandês deve pedir a entrada para a OTAN em julho).
Ao sul o mar negro e as montanhas do cáucaso, ambas posições defensáveis. A entrada ao mar negro obrigatoriamente ocorre pelo estreito do Bósforo, na Turquia (membro da OTAN). A frota do mar negro e sistemas de mísseis em solo russo aproveitaram o funil para deter a entrada de embarcações de alto mar. As montanhas, por sua vez, são uma ótima posição defensiva.
Ao leste o oceano pacífico, e uma vez no continente, as vastas montanhas de Kolyma. Ao centro do país, as montanhas de Ural, a cadeia de montanhas que marca a fronteira entre a Rússia europeia e asiática.
A fronteira difícil de ser defendida é a do oeste, com o leste europeu. Quanto menor for a abertura direta ao estepe euro-asiático mais defensável se torna a posição da Rússia. A Ucrânia é a entrada ao sul para o estepe euro-asiático, enquanto a Polônia é a entrada ao norte.
Com a Ucrânia neutra, ou parte do bloco Russo, a entrada para o estepe é virtualmente inacessível pelo sudoeste europeu. O oeste ucraniano inclui uma parte da cadeia de montanhas dos Cárpatos, uma posição mais fácil de ser defendida. Além disso, a Ucrânia é dividia em duas partes pelo rio Dnieper, outro obstáculo geográfico que dificulta uma invasão pelo sudoeste europeu.
Nesse cenário, com a Ucrânia neutra ou no bloco russo, qualquer movimento de tropas teria de vir da Polônia. Isso representa um afunilamento de tropas, facilitando a defesa da Rússia no front europeu. Além disso, a fronteira entre a Polônia e Lituânia, conhecida como o estreito de Suwalki, é um ponto fraco para a OTAN. Essa zona de 100 km pode ser rodeada pela Bielorrússia e a província russa de Kaliningrado, isolando os países bálticos do resto da OTAN.
Em contrapartida, com a Ucrânia no bloco europeu, a entrada do estepe fica completamente aberta, estendendo o campo de batalha por mais de 2300 quilômetros. A Ucrânia se torna um acesso ao estepe euroasiático russo, permitindo um ataque rumo ao norte, onde está Moscou, ou ao leste, em Volgogrado, a menos de 300 quilômetros da fronteira com a Ucrânia.
Durante a era soviética essa cidade se chamava Stalingrado, e foi o palco da batalha mais violenta da história da humanidade. As forças nazistas, invadindo via Ucrânia, travaram uma batalha com o exército vermelho durante 5 meses, levando à morte de 2 milhões de pessoas entre soldados e civis. Stalingrado dos anos 40 era importante pela mesma razão de hoje. A cidade é o centro de distribuição do petróleo extraído no sul da Rússia, no mar cáspio, para o resto do país e rotas de exportação.
Recomendo o vídeo abaixo explicando o atual conflito e como a geografia é importante fator. Usei algumas imagens retiradas daqui neste texto.
Todos os regimes da história do que hoje chamamos de Rússia tem conhecimento disso. Moscou, no final das contas, está no meio da planície. Expandir as fronteiras para barreiras geográficas é de fundamental importância para a sobrevivência do regime. O vídeo abaixo é timelapse do imperialismo russo, mostrando como o povo Rus do Grão-Principado de Moscou expandiu suas fronteiras durante centenas de anos, conquistando diversos territórios e povos, como os Tatars, Cossacks, Kazaks, Chechenos, os próprios ucranianos, além de outros, até conquistar as fronteiras dos dias de hoje. Imperialismo raiz, na base da espada, bala, tanque, sangue, genocídio, massacres e outras atrocidades.
Voltando aos dias de hoje. Para a Rússia, a Ucrânia é um ponto chave na sua estratégia de defesa nacional, mas a importância deste país não se limita apenas à geografia do campo de batalha. Na seção dedicada à Ucrânia, vamos ver como os dois países possuem a história e cultura interligadas, além dos recursos econômicos que a Rússia busca ao manter a Ucrânia no seu bloco.
Para concluir a primeira parte, tanto OTAN como Rússia sabem que a neutralidade da Ucrânia, ou alinhamento com um dos blocos, muda o balanço de poder na região. O povo ucraniano deseja a aproximação com o ocidente para desenvolver sua economia. A OTAN sabe que essa aproximação lhe beneficia, assim como quando os demais países do leste europeu entraram para a aliança. O desejo imperialista russo é pelo controle e influência econômica da Ucrânia e da bolha de defesa do seu território nacional. Essa guerra, antes de mais nada, é sobre este insustentável balanço.
Não deixe de inscrever-se para acompanhar os próximos textos sobre esse conflito. No próximo capítulo, o balanço de poder na região e porque Putin arriscou tudo para modifica-lo.
Muito bom seu texto, Ricardo! Parabéns!! Já estou aguardando o próximo capítulo!
Parabéns Filho, excelente texto, assim podemos ter uma visão mais aprofundada